A segunda noite de desfiles do Grupo Especial – a elite das escolas de samba do carnaval carioca – que começou na segunda-feira (3) e virou a madrugada – teve a ancestralidade africana como principal tema de destaque.
Três das quatro escolas – Unidos da Tijuca, Beija-Flor e Salgueiro – abordaram o assunto de alguma forma nos enredos.
A Unidos de Vila Isabel, que fechou a noite, preferiu assombrar o público com um enredo que apresentava também elementos de diversão.
Unidos da Tijuca
Poucos minutos depois das 22h, a juventude do Borel, como diz trecho do samba-enredo da Unidos da Tijuca, desceu o morro para cantar em louvor a Lógun Edé, personagem principal do enredo da escola de samba. Nas arquibancadas, o público saudava a agremiação, que abria a noite de desfiles.
A Unidos da Tijuca, dona de quatro títulos na elite do carnaval carioca – o último em 2014 – levou para o sambódromo o enredo Logun-Edé – Santo Menino que o Velho Respeita.
A azul e amarelo da Tijuca – tradicional bairro da zona norte carioca – conta a história da divindade cultuada pelas religiões de matriz africana conhecida como príncipe dos orixás.
Segundo a tradição iorubá, Logun-Edé é filho de Oxum, orixá associada à pesca e água doce; e Oxóssi relaciona-se com a caça e florestas.
A cantora Anitta é uma das compositoras do samba-enredo, mas não compareceu ao desfile por questão de agenda.
Ancestralidade
A comissão de frente evidenciava que a ancestralidade africana seria um dos destaques da noite. Uma das duas coreógrafas responsáveis pela equipe, Bruna Lopes, exaltou a presença do tema na Passarela do Samba.
“Esse público vibrando, estando junto, cantando o samba. Essa é a melhor resposta que qualquer artista pode receber, a troca, a energia do público. Respeite o axé de todo mundo”, afirmou.
“A pesquisa que fizemos, baseada na dança, foi a mais didática possível para que qualquer público leigo consiga captar essa historinha que a gente vem contando na avenida”, completou.
O enorme abre-alas era dividido em dois módulos. No primeiro deles, grávidas simbolizavam a gestação sagrada de Logun-Edé.
No último carro, via-se a representação do morro do Borel que, por meio da música do afro funk e do grafite, amplificava para o mundo mensagens da juventude preta periférica.
A primeira porta-bandeira, Lucinha Nobre, estava radiante com a desfile, que classificou como uma aula.
“Esse enredo é uma aula de ancestralidade, de africanidade, respeito ao próximo, de que temos que nos valorizar, dar as mãos”, disse.
“Fazer um desfile brincando com o samba que você gosta, uma história que você respeita e admira, é uma honra”, disse a porta-bandeira que está há 41 anos no carnaval. “Comecei em 1984, junto com essa passarela e, a cada ano, eu quero mais”.
Beija-Flor
A Beija-Flor começou o seu desfile nos últimos minutos da segunda-feira. Entrou na avenida praticamente soltando fogo. O público delirou ao ver as chamas saindo do carro abre-alas, Xangô Me Guia.
Dona de 14 títulos na elite do carnaval do Rio, a Beija-Flor de Nilópolis, município da região metropolitana do Rio de Janeiro, entrou na avenida para um desfile histórico – a despedida do intérprete Neguinho da Beija-Flor, após 50 anos representando a voz da azul e branca.
A escola apresentou ao público da Marquês de Sapucaí o enredo Laíla de Todos os Santos, Laíla de Todos os Sambas, uma homenagem ao diretor de carnaval que figura entre as maiores personalidades da agremiação e do carnaval carioca.
Laíla participou de 13 dos 14 títulos da escola. Seguidor da umbanda, era sempre visto com diversas guias no pescoço, uma forma de proteção, conforme acreditava. Laíla morreu em 2021, vítima da covid-19.
Reencontro
Um dos pontos altos do destaque foi o quinto carro alegórico – Vem Comandar Sua Comunidade – que representou um reencontro de baluartes da escola: o homenageado Laíla e o carnavalesco Joãozinho Trinta, morto em 2011, que ajudou a escola a conquistar cinco títulos.
Um destaque representava Laíla com o pescoço coberto de guias. Joãozinho estava vestido de gari, referência à alegoria que viria logo em seguida, uma reedição do Cristo Preto, famosa alegoria coberta por uma gigantesca lona preta e cercada por ratos, que fez parte de um desfile antológico da Beija-Flor, em 1989, quando contava com as duas personalidades.
À época, depois de polêmica com a Igreja Católica, o Cristo Proibido, como ficou conhecido, levou uma faixa com a frase “mesmo proibido, olhai por nós”. Trinta e seis anos depois, a faixa traz a inscrição Do Orun olhai por nós. Orun, em iorubá, representa plano espiritual.
Os ocupantes da alegoria simbolizavam mendigos, como classifica a sinopse da escola. Eles homenageavam também a carnavalesca Rosa Magalhães, morta em julho de 2024.
A ala da comunidade Ratos e Urubus – O Carnaval Antológico separava os dois últimos carros. Aline Barreiros era uma das componentes com fantasias de saco de lixo.
“Representa uma homenagem muito grande que a gente está fazendo ao Laíla e ao Joãozinho Trinta. Para a comunidade nilopolitana, é um carnaval muito importante e ficamos muito felizes em fazer essa homenagem” disse à Agência Brasil.
A porta-bandeira Selminha Sorriso, que, ao lado de Claudinho forma o casal mais antigo do grupo de elite (29 anos) – destacou o papel do homenageado, Laíla, como uma das personalidades do carnaval que lutaram para levar à Sapucaí enredos de temática afro.
“Um homem que brigou por enredo de temática afro-brasileira, um homem que brigou para trazermos enredos de matriz africana para o Sambódromo, que é o nosso lugar de fala, é o nosso quilombo, é onde o povo preto conseguiu respeito, dignidade, onde abrimos portas e vamos abrir muito mais”, declarou Selminha.
Salgueiro
A comissão de frente, que tem como meta fazer a abertura do desfile da escola de samba, teve um papel simbolicamente oposto no Salgueiro, já na madrugada da terça-feira (4).
Os bailarinos tiveram a missão de fechar espiritualmente o Salgueiro, isso porque a agremiação teve como enredo a proteção representada pelo “corpo fechado”, conforme explicou o assistente de coreografia Fábio Albuquerque.
“A comissão de frente representa isso, fechando o corpo do Salgueiro, descendo o morro do Salgueiro para todo mundo fechar o corpo, e a gente invoca os ancestrais para fazer esse fechamento”, explicou.
O Salgueiro foi a terceira escola da noite a levar, de alguma forma, o tema ancestralidade para a Sapucaí.
A escola, também do bairro da Tijuca, atravessou a Passarela do Samba de corpo fechado. O enredo Salgueiro de Corpo Fechado explorou a relação humana com a busca pela proteção espiritual.
O tema da vermelha e branca, que busca o décimo título na elite do carnaval, fez referências à chegada na Bahia de africanos muçulmanos escravizados e à herança que veio de povos mandingas de Mali, no norte da África.
“O carnaval vem movido pelos nossos ancestrais, é uma festa movimentada pelos negros no início, eles que inventaram o carnaval”, explicou Fábio Albuquerque.
Defumadores
Para garantir que a proteção se estendesse por toda a escola, o Salgueiro defumou a Sapucaí. O público pôde sentir o cheiro das ervas que exalava de defumadores.
Elizabeth Silva desfilou na ala Erveiras, que cruzou o sambódromo com os defumadores. “Deu tudo certo. Foi maravilhoso. Emoção muito grande estar aqui”, disse.
Na avaliação do diretor de carnaval, Wilsinho Alves, o Salgueiro teve um grande desfile.
“O Salgueiro se apresentou brilhantemente, com emoção, com a galera reagindo ao nosso samba, que viralizou, porque o enredo comunica-se muito bem com as pessoas, a questão do fechamento de corpo. É um samba valente pra caramba, é um samba em que a gente apostava muito”, descreveu.
O diretor de carnaval ressaltou ainda a postura técnica da escola. “As pessoas falavam que o Salgueiro iria abrir buraco, está aí a prova de que o Salgueiro é técnico. Eu sei do meu trabalho, eu sei da minha equipe. A gente está na briga”, acentuou.
Vila Isabel
A Vila Isabel foi a quarta e última a desfilar. A agremiação levou para a avenida elementos, pelo menos em teoria, assustadores. Fantasmas, lobisomens, caveiras, dragões, monstros, mascarados, bicho-papão, espantalhos, cuca, vampiros, bruxas, lobo mau e zumbis estavam presentes em fantasias e alegorias.
A escola da zona norte do Rio e dona de três títulos da primeira divisão – sendo o último em 2013 – expôs para o público e jurados o enredo Quanto mais eu rezo, mais assombração aparece, desenvolvido pelo carnavalesco Paulo Barros, que dias atrás criticou a presença da temática africana nos carnavais. “São todos iguais e ninguém entende nada”.
O desfile se desenvolveu a partir de uma viagem de trem imaginária, mostrando como assombrações fazem parte de nossas vidas, porém, esbanjando a diversão de um trem fantasma.
Durante a paradinha da bateria de Mestre Macaco Branco, um drone que simulava uma abóbora de halloween arrancou aplausos do público. No entanto, durante uma manobra o equipamento caiu no chão.
Diversão
Na comissão de frente, o ator José Loreto interpretou o diabo e deixou claro que a ideia era levar para o público susto e diversão.
“O tema é esse, embarque nessa emoção aqui, bota os demônios para fora, esses do carnaval, esses fantasiosos, esses que brincam. Acho que o público gostou, dava um sustinho e abriu um sorrisinho”, disse o ator, que é um novato em desfiles. “Acho que me saí bem, a minha sensação é muito boa, a galera vibrando junto”, declarou.
A prova de que a escola não queria mesmo assustar o público estava no quinto dos seis carros alegóricos, Quem Tem Medo de Bicho-Papão, que era repleto de personagens infantis, inspirados no cinema, para divertir e transformar o pânico em brincadeira.
Um dos baluartes da Vila Isabel, o cantor e compositor Martinho da Vila atravessou a Passarela do Samba no carro abre-alas e não escondeu a emoção. “Agora acalmou um pouco [o coração] está quase ficando normal, mas ele bateu muito”, garantiu.
Três noites
Pelo regulamento, cada escola teve o limite entre 70 e 80 minutos para cruzar a Passarela do Samba. Todas ficaram dentro do intervalo.
Até o ano passado, os desfiles da Grupo Especial do Rio aconteciam apenas no domingo e na segunda-feira de carnaval, mas agora em 2025 é o primeiro ano em que o espetáculo é dividido em três noites.
No domingo (2), desfilaram Unidos de Padre Miguel, Imperatriz Leopoldinense, a atual campeã Unidos do Viradouro e Mangueira.
Na noite desta terça-feira (4) será a vez da Mocidade Independente de Padre Miguel, Paraíso do Tuiuti, Acadêmicos do Grande Rio e Portela, a maior campeã de todas com 22 conquistas.
As escolas são avaliadas por 36 jurados, quatro para cada um dos nove quesitos: bateria, samba-enredo, harmonia, evolução, enredo, alegorias e adereços, fantasias, comissão de frente, mestre-sala e porta-bandeira.
As notas serão lidas na tarde da quarta-feira de cinzas (5), quando serão conhecidas a campeã do carnaval 2025 do Rio e a escola a ser rebaixada.
Fonte: Agência Brasil